Cotidiano

Como a tecnologia pode nos ajudar a perder o sotaque ao falar línguas estrangeiras

Truque para perder sotaque carregado e imitar falantes nativos pode estar no re-treinamento do cérebro para ouvir novas frequências. Até 2020, 2 bilhões de pessoas vão falar inglês, prevê o British Council
Nappy
Você já teve dificuldade de compreender ao ouvir um falante de inglês nativo? Pois foi o que aconteceu com o tenista alemão Alexander Zverev durante uma coletiva de imprensa no Aberto da França em 2018.
Zverev tentou, em vão, entender uma pergunta do repórter esportivo Jonathan Pinfield, natural de Yorkshire, no norte da Inglaterra.
O vídeo acabou viralizando nas redes sociais.
Pinfield riu da situação, mas disse depois à BBC que tem que falar devagar quando faz entrevistas. Além disso, costuma ser mal interpretado.
A realidade é que um sotaque carregado pode ser um empecilho para a nossa carreira. Pesquisas mostram que os empregadores no Reino Unido ainda favorecem padrões de sotaques americano e/ou britânico para postos de maior prestígio ou “status mais alto”.
Língua franca
Até 2020, 2 bilhões de pessoas vão falar inglês, prevê o British Council, órgão de promoção da cultura inglesa ao redor do mundo. O inglês já é falado por cerca de 1,75 bilhão de pessoas globalmente. Tornou-se a língua franca no mundo dos negócios. Ainda assim, falar sem sotaque carregado não é tão onipresente, pois muitos falantes não são nativos.
E até mesmo falantes nativos se sentem julgados pela maneira como falam: mais de um quarto dos britânicos sente que sofreu discriminação por seu sotaque, segundo uma pesquisa realizada recentemente.
O designer britânico Paul Spencer sentiu isso na pele. Spencer se mudou de Fens, no leste da Inglaterra, para Londres em 2003. Ele conta que se viu obrigado a abandonar seu jeito natural de falar e adotar um sotaque mais neutro para progredir no trabalho.
“Foi um esforço consciente, porque originalmente não sabia que tinha um sotaque ou usava dialeto local, mas as pessoas olhavam para mim com uma cara de espanto”, diz ele. “Comia sílabas. Achava que todo mundo aqui falava assim também, mas não”.
No mundo corporativo, várias empresas, como Audi, Airbus, Renault e Samsung, estão adotando o inglês como idioma oficial de negócios entre os países.
Na prática, a maneira como isso é implementado varia de acordo com a cultura de cada uma. As regras de usar somente o inglês podem, por exemplo, se aplicar somente a executivos em reuniões do alto escalão ou a absolutamente todos os funcionários em todos os países em todos os níveis de comunicação.
O maior site de comércio eletrônico do Japão, o Rakuten, levou a sério a política de usar apenas o inglês como língua franca, chegando até mesmo a substituir os menus do refeitório (em japonês) durante a noite. Na fabricante de automóveis japonesa Honda, executivos do alto escalão terão que provar que são fluentes em inglês até 2020.
Tudo isso faz parte de uma tendência global cada vez mais abrangente, à medida que as empresas tentam aumentar suas receitas internacionais, especialmente aquelas que exportam bens e serviços, diz Christine Naschberger, professora de gestão de recursos humanos da Audencia Business School, em Nantes, na França.
“Para grandes corporações como L’Oréal e LVMH que exportam a maioria de seus produtos, o inglês é realmente o idioma comercial. Mas eu diria que até empresas menores que estão em busca de expandir para fora de seus países de origem estão adotando o inglês como língua oficial. Por isso, se você tem um sotaque carregado pode ser uma desvantagem a longo prazo”.
Por exemplo, uma empresa alemã que exporta mercadorias para fornecedores em, digamos, 20 países diferentes em todos os continentes pode não ter funcionários fluentes nas línguas de todos eles, nem espera que todos eles sejam fluentes em alemão. Mas pode fazer negócios usando um idioma comum: inglês.
Essa tendência ocorre apesar do fato de que, após o Reino Unido deixar a União Europeia, o inglês perderá o status que tinha no bloco. Nenhum dos 27 países-membros restantes usa o inglês como idioma oficial. No entanto, o inglês continuará a ser uma língua de trabalho na UE. Sendo assim, a capacidade de falá-lo de forma compreensível, sem sotaque – ainda será objeto de cobiça.
Truque para perder sotaque carregado e imitar falantes nativos pode estar no re-treinamento do cérebro para ouvir novas frequências
Pixabay
Diga ‘shibboleth’
A forma de falar vem sendo usada como ferramenta de segregação social por milênios. Quando a Tribo de Gileade derrotou os Efraimitas na Bíblia, eles usaram o sotaque como um meio de identificar os efraimitas sobreviventes que tentavam fugir.
Quem alegou não ser um sobrevivente foi solicitado a pronunciar a palavra hebraica “Shibboleth”, que significa fluxo. As pessoas de Gileade pronunciavam-na com o som ‘ch’, enquanto os efraimitas não conseguiam fazer o chiado. Assim, qualquer um que falasse “Sibboleth” ao invés de “Shibboleth” foi morto no local: 42 mil falharam no teste, segundo o Antigo Testamento.
Nosso sotaque ainda tem profundas implicações em nosso status social, diz Caroline Belot, consultora pedagógica e diretora de comunicações da Sound Sense, uma escola de idiomas em Paris. “Se você pronuncia uma palavra muito mal ou não tiver a entonação correta, pode ser ‘fritado’ em uma reunião.”
Belot cita o erro comum cometido pelos franceses de pronunciar a palavra “foco” como “fuc-us”, que pode causar danos imediatos que prejudicam a credibilidade e a confiança de quem fala. “Como um francês, quando você vai para o exterior, percebe que a maneira como falamos pode ser percebida como fria, chata, irônica, às vezes rude, sarcástica, até deprimida ou geralmente mostrando falta de interesse.”
Reeducando seu cérebro
Então, o truque para a verdadeira fluência reside em re-treinar seu cérebro para neutralizar seu sotaque?
O otorrinolaringologista francês Alfred Tomatis descobriu que cada idioma tem sua própria largura de banda; Escolas de idiomas como o Sound Sense em Paris agora usam esse método para ajudar a re-treinar o cérebro de profissionais franceses para freqüências de inglês usando um dispositivo conhecido como ouvido eletrônico. Trata-se de um conjunto de fones de ouvido que transmite o som através da condução aérea e óssea, fazendo pequenas vibrações que passam através do crânio para o ouvido interno, semelhante a um aparelho auditivo.
Os humanos podem ouvir cerca de 20 Hz a 20 mil Hz. Isso explica por que não escutamos o apito de cachorro porque tal dispositivo emite uma frequência muito maior; nós simplesmente não ouvimos tão bem quanto cachorros e outros animais.
Toda linguagem humana oscila em uma gama diferente de freqüências, com o inglês britânico flutuando consideravelmente entre 2 mil e 12 mil Hz e o francês muito menos entre 15 e 250 Hz e 1 mil a 2 mil Hz. Se o francês pode ser descrito como um idioma uniforme, o inglês é repleto de variações. O russo flutua entre incríveis 125 a 12 mil Hz. Isso significa que alguns idiomas, como o inglês e o russo, podem ter um tom muito mais alto e mais baixo do que o francês.
O método treina o ouvido para a frequência de outras línguas. Primeiro, um instrutor treinado realiza um teste de audição de meia hora para descobrir quão bem um aluno já pode ouvir frequências diferentes.
Segue-se a isso uma gravação em fita de duas horas de música, tipicamente música clássica como Mozart, que foi modificada para filtrar as freqüências que você já pode ouvir bem e tocar aquelas que seu ouvido não pode ouvir tão bem. Essas frequências são ligadas e desligadas ao longo da gravação para acordar os pequenos músculos do ouvido médio e fortalecê-los – uma forma de exercício para os ouvidos que pode ser feito sentado em casa.
“Misturamos música e programas específicos na língua que você quer aprender. Ao trabalhar em um método de treinamento, você quer educar os ouvidos e a boca para poder falar no comprimento de onda correto”, explica Belot.
O Sound Sense combina o método com aulas de idiomas, de preferência frente a frente ou por Skype.
Fabienne Billat trabalha como consultora no setor de comunicação digital e estratégia, o que envolve viagens frequentes da França para os Estados Unidos para participar de conferências. Ela diz ter achado o método útil. “O foco do treinamento é realmente entender o ritmo e a acentuação”, diz ela. “A combinação de aulas e o treinamento com o ouvido eletrônico é um método envolvente. É diferente.”
Outras empresas que usaram esse método para ajudar a equipe a melhorar suas habilidades em outros idiomas são IBM França, Renault e Cisco. Uma técnica diferente chamada método Berard também usa essa forma de treinamento auditivo para ajudar no desenvolvimento da linguagem.
Algumas escolas de idiomas afirmam que o uso desse método de treinamento auditivo pode reduzir o tempo necessário para aprender um idioma em até 50%. A Universidade Politécnica de Valência, na Espanha, avaliou o método Tomatis em um estudo recente. A conclusão foi que se trata de uma ferramenta efetiva de aprendizado.
A arte de ouvir
Então, por que não podemos identificar os sotaques mais facilmente e desativá-los? É porque os nossos hábitos começam quando somos jovens.
O cérebro de um recém-nascido pode perceber toda a gama de sons da fala humana, mas em cerca de oito meses ele começa a restringir esse alcance à sua língua ou idiomas nativos. Alguns linguistas dizem que o período crítico para aprender um idioma de forma fluente é por volta dos seis anos de idade, enquanto outros acreditam que o período de corte é na adolescência. Na idade adulta é quase impossível aprender uma nova língua sem sotaque, diz Jennifer Dorman, designer instrucional em didática no aplicativo de aprendizagem de idiomas Babbel.
Em outras palavras, um falante nativo de francês pode ter dificuldade para falar inglês sem sotaque porque seu cérebro não consegue mais perceber toda a gama de frequências que forma a língua inglesa e sua boca não consegue reproduzir o som certo.
Especialistas em linguística dizem que a melhor maneira de falar inglês como um nativo, como em qualquer outro idioma, é ouvir e falar o idioma o máximo possível
Steven Thompson/Unsplash
Dorman diz: “Algumas pessoas são naturalmente talentosas em aprender línguas e muitas vezes eram pessoas que foram expostas a vários idiomas quando crianças. Seus cérebros estavam abertos a muitos níveis diferentes e não começavam a filtrá-los e dessensibilizá-los àqueles diferentes intervalos, por isso é mais fácil para eles ouvirem sons”.
“Praticamente toda a gama de tom e largura de banda no francês está fora do tom e da largura de banda do inglês britânico. Pode ser necessário um pouco mais de esforço e exposição para que os falantes de francês reativem esses diferentes tons”.
O que posso fazer?
Especialistas em linguística dizem que a melhor maneira de falar inglês como um nativo, como em qualquer outro idioma, é ouvir e falar o idioma o máximo possível. O empresário brasileiro Rafael dos Santos diz que quando se mudou para o Reino Unido em 2002, fez aulas formais de inglês e até contratou um técnico de voz, mas descobriu que a melhor maneira de melhorar seu sotaque era praticar a leitura com seu então namorado antes de ir para a cama.
“Foi como eu aprendi mais”, diz ele. “Ele era um falante nativo de inglês e realmente me ajudou a melhorar. Eu lia em voz alta e ele corrigia minha pronúncia.”
Mas, no final, um sotaque só é um problema se as pessoas não conseguem entender você facilmente, diz a empreendedora russa Polina Montano. Ela é cofundadora de uma empresa que anuncia cargos de nível básico em setores de serviços como o setor hoteleiro. Muitos dos candidatos não são falantes nativos de inglês.
“Acredito que as pessoas em nossa sociedade estão se abrindo para abraçar a diversidade. Você precisa acreditar em si mesmo”. E da próxima vez que seu sotaque afetar sua autoestima, Montano tem uma dica. “Diga a si mesmo: todo mundo tem um sotaque. mas o meu é fofo”.
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redação

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