Cotidiano

Os fascinantes tratamentos com vinho na França

No hospital de Estrasburgo, a prescrição médica para inchaço é uma garrafa de Châteauneuf-du-Pape, enquanto o tratamento para obesidade é tomar taças de Côtes de Provence rosé. Pacientes do hospital recebiam taças de vinho como tratamento para doenças até apenas algumas décadas atrás
Melissa Banigan/BBC
O médico grego Hipócrates, conhecido como o pai da medicina, fez experimentos com vários tipos de vinho para tratar doenças, acreditando que “o vinho é apropriado para a humanidade, tanto para o corpo saudável quanto para o corpo doente”. Nos tempos modernos, nós aprendemos que devemos beber com moderação, mas, na França, um país cuja viticultura remonta ao século 5 a.C, “à votre santé” – ou “à sua saúde” – é um brinde que ressoa bem até no século 21.
Para aprender mais sobre a deliciosa e incestuosa relação francesa entre vinho e medicina, eu visitei uma adega nas entranhas de um hospital medieval em Estrasburgo, cidade localizada na região da Alsácia, no leste da França.
Estrasburgo, uma cidade moderna com 2 mil anos de história, é mais conhecida pelo seu centro (chamado Grande-Île), listado como Patrimônio Mundial da Unesco em 1988.
Turistas visitam o local em bandos para conhecer seus mundialmente famosos pontos turísticos, incluindo a Catedral Notre Dame, o Palácio Rohan e suas feirinhas de natal, além de jantar nos seus restaurantes de vinho como Chez Yvonne ou Maison Kammerzell, que fica em um prédio de 1427.
A adega abriga o que é conhecido como o vinho branco mantido em barril mais antigo do mundo, que data de 1472
Melissa Banigan/BBC
Mas eu estava indo ao Hospital Civil de Estrasburgo, um hospital universitário criado em 1119. Naquela tarde chuvosa, as ruas estavam vazias e, conforme eu andava pelas vias de pedras com dois companheiros, era fácil imaginar a aparência da cidade há centenas de anos atrás.
Desde 1395, o Hospital Civil de Estrasburgo tem uma relação simbiótica com a Adega Histórica dos Hospícios de Estrasburgo, que fica exatamente embaixo do hospital: um literalmente não existiria sem o outro. Por cerca de 600 anos, muitos dos pacientes do hospital pagaram suas contas médicas com vinhos da adega.
Era uma prática comum na França, já que as vinícolas geravam renda para os hospitais e as adegas, que funcionavam como geladeiras enormes, eram os locais perfeitos para manter os vinhos na temperatura certa.
Apesar de os tratamentos com vinho serem onipresentes nos tempos antigos, Thibaut Baldinger, gerente da adega que visitei, afirma ter visto evidências de que o vinho foi usado como remédio desde os anos 1960 – e que os tratamentos não foram interrompidos até 1990.
Uma garrafa de Châteauneuf-du-Pape, por exemplo, seria a prescrição médica para o inchaço, enquanto uma garrafa do preferido do verão por aqui, Côtes de Provence rosé, era usado para tratar a obesidade.
Colesterol alto? Duas taças de Bergerac. Para herpes, era recomendado que os pacientes tomassem um banho de banheira com o adorável Muscat de Frontignan. Problemas de libido? Seis taças de Saint-Amour transformariam o paciente em um Don Juan na hora – curiosamente, duas jarras desse vinho também eram recomendadas para “problemas femininos”.
“E quanto ao fígado?”, perguntei. Baldinger riu: “Talvez alguns tratamentos funcionassem melhor que outros”.
Mais tarde, percebi que a lista de tratamentos de vinho incluía três garrafas inteiras de Beaune com água com gás para cirrose, o que me leva à conclusão de que ao menos uma pessoa da história moderna acreditou que ficar ébrio pode ser um antídoto para a falência do fígado.
Apesar dos tratamentos de vinho terem sido encerrados há várias décadas, a adega continua tendo um papel importante na produção histórica de vinho ao continuar mantendo alguns dos melhores vinhos do país enquanto apoia financeiramente o hospital. Em 1995, porém, a adega quase foi relegada aos livros de história devido ao que Baldinger chamou de “falta de lucratividade”.
Thibaut Baldinger, gerente da adega, afirma ter visto evidências de que o vinho foi usado como remédio desde os anos 1960
Melissa Banigan/BBC
No século 20, o hospital vendeu pedaços de vinícolas para financiar projetos que precisavam de ajuda imediata. Porém, a adega foi forçada a abandonar barris gigantes de vinho envelhecido depois que uma lei do país – a Loi Évin – foi aprovada em 1991. A lei era mais rígida com o armazenamento de bebida como tentativa de prevenir o alcoolismo, o que significa que o governo não aceitaria mais barris de bebida no porão de um estabelecimento de saúde.
O antecessor de Baldinger, Philippe Junger, tornou-se um verdadeiro defensor da adega ao trazer o apoio de vinicultores da região e criando a Sociedade de Interesse Agricultor Coletivo (Sica, na sigla em francês). O coletivo encontrou formas de convencer parlamentares a manter a adega aberta ao falar de sua importância para o patrimônio da região.
Ao salvar o local histórico, dezenas de vinícolas da Alsácia começaram a se esforçar mais para melhorar seus vinhos sob o zelo de Junger e dos enólogos da adega. Desde 1996, realiza-se uma competição de prova cega todo janeiro: e o vinho que não é aprovado é retirado da adega.
Hoje, a adega produz 140 mil garrafas de Gewürztraminer, Klevener de Heiligenstein, Sylvaner e Riesling por ano, com uvas cultivadas por 26 parceiros diferentes. Os vinhos são envelhecidos de 6 a 10 meses em barris de carvalho gigantescos antes de serem engarrafados e vendidos ao público. A adega não faz qualquer tipo de publicidade e tem apenas um site.
“Todo produtor de vinho parceiro dá uma pequena porcentagem de sua produção à histórica loja da adega como aluguel”, diz Baldinger. Os lucros da parte da produção da adega são investidos na compra de equipamento médico para o hospital, enquanto os parceiros se beneficiam com a parte do leão do vinho.
Alguns vinhos da adega nunca são vendidos. Baldinger apontou para um pequeno armário embutido na parede de pedra da adega. Dentro há uma caveira e uma garrafa de vinho – o líquido dentro descoloriu para um vermelho sangue – com uma data escrita: 1472. “Há especulações de que a caveira era do Senhor Arthur, o primeiro mestre da adega. Ele pode ter tomado vinho demais”, diz Baldinger.
O vinho é envelhecido na adega de seis a 10 meses antes de estar diponível para compra
Melissa Banigan/BBC
E quanto à história desse vinho – o primeiro produzido pela adega? “Eu te mostro”, diz Baldinger, levando-nos para longe do armário e entre duas colunas de barris gigantes de carvalho. Lá, um velho portão de ferro separa a adega de um depósito, no qual há meia dúzia de barris de carvalho menores. Baldinger puxa uma grande chave-mestre do seu bolso e abre o portão que nos leva ao Vin Blanc d’Alsace (Vinho Branco da Alsácia), que acredita-se ser o mais antigo vinho branco mantido em um barril.
Baldinger explica que esse vinho só foi provado três vezes: a primeira foi em 1576, quando os habitantes de Zurique (que fica a 200km dali) enviaram uma quantidade enorme de mingau a Estrasburgo para mostrar que a cidade daria assistência em caso de necessidade.
Em menos de 24 horas, o mingau chegou, ainda quente. Baldinger diz que Estrasburgo reagiu ao ato de bondade dando um gole do famoso vinho da cidade aos enviados de Zurique.
A segunda prova aconteceu em 1718, durante a reconstrução do hospital após um incêndio devastador, quando a farmácia (que era uma padaria 200 anos atrás), a capela protestante e a adega foram as únicas construções não afetadas pelo desastre. “Um frasco contendo o vinho de 1472 foi simbolicamente derramado na primeira pedra do novo prédio e, nessa ocasião, o vinho foi provado pela segunda vez”, explica Baldinger.
A terceira e última vez que o vinho foi tomado foi em 1944. Durante a Segunda Guerra Mundial, a adega operou sob o comando dos nazistas (que, segundo Thibaut, encheram a maioria dos barris com seu vinho preferido, o Bordeaux). Após o fim da guerra e pouco depois da libertação de Estrasburgo, o general Leclerc (que mais tarde se tornaria Marechal da França) tomou um gole de celebração do velho vinho.
A maioria dos visitantes da adega não podem nem passar pelo portão, mas, talvez por sentir nosso entusiasmo, Baldinger perguntou se queríamos cheirar a jóia da adega. Bien sûr, respondemos.
Baldinger gentilmente tirou a rolha do barril de carvalho e a colocou sob nossas narinas, permitindo que o cheiro penetrasse nossos olfatos.
Conhaque. Eu não sou uma sommelier experiente, mas, assim como o conhaque francês, o vinho tinha um cheiro que lembrava geleia de ameixas, com tons de baunilha – algo que me lembrava da velha caixa de cigarros do meu avô. “Parece delicioso”, eu disse, esperançosa. “Talvez um golinho?”
Bandinger balançou a cabeça. O pH do vinho, diz ele, é 2,28 – muito ácido para beber sem machucar o estômago (o pH da maioria dos vinhos brancos são mais altos que 3,0).
Nem todo o vinho contido no barril foi produzido em 1472, no entanto. “Acrescentamos vinho toda vez que o carvalho está seco”, diz Baldinger. “Quatro vezes ao ano, entre 4 e 6 litros são adicionados aos 400 litros originais. Selecionamos um Riesling ou um Sylvander que envelheceram na nossa adega”.
E as uvas originais usadas no vinho? “Infelizmente, não sabemos”, diz Baldiner. “Houve muita mutação ao longo dos anos, e muita mistura de uvas nas vinícolas”.
Eu suspirei ao ver Baldinger fechar o barril – estava disposta a passar mal do estômago para poder dizer que eu provei esse vinho especial. Além disso, deve haver um tratamento de vinho para esse tipo de dor, não é mesmo?
Felizmente, há vários outros tipos de vinhos vintage para provar. Baldinger abriu uma garrafa de Gewürztraminer e nos deu uma boa quantidade para provar.
Sentamos ao redor de uma mesa com toalha quadriculada vermelha e branca e tomamos um gole: doce, como um buquê de lichias, era delicioso e energizante em uma noite úmida e chuvosa – e, de fato, até 1990, duas taças desse líquido eram usadas para tratar infecções.
Ao sair da adega, comprei uma garrafa desse “remédio” da Alsácia para minha família colocar no seu armário de remédios – ou mesa de jantar – em casa.
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redação

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