Cotidiano
O antigo segredo guardado pelo Caminho de Santiago
A força mística do Cabo Finisterra, na Espanha, atrai peregrinos desde a antiguidade. O nome ‘Finisterra’ é de origem latina e significa literalmente ‘fim da Terra’
Jorge Luis Ojeda/Unsplash
Uma simples bota de bronze repousa sobre uma rocha com vista para a imensidão do Oceano Atlântico. Não há placa, mas a mensagem é clara. É chegado o fim da linha. E também “o fim do mundo”.
Todas as rotas de peregrinação do Caminho de Santiago se encontram na catedral de Santiago de Compostela, capital da Galícia, no noroeste da Espanha, onde estaria localizada a suposta sepultura de São Tiago.
Por mais de mil anos, as pessoas percorreram esses caminhos para homenagear o apóstolo, mas para um pequeno número de viajantes que chegam à cidade sagrada, a jornada ainda não está completa.
A partir da praça principal, outro percurso menos conhecido surge a oeste. As torres da catedral desaparecem à medida que a trilha deixa a cidade e segue por 90 km até o indomável Oceano Atlântico – e o Cabo Finisterra.
Com nome que vem do latim, traduzido literalmente como “fim da terra”, este recanto da Espanha cortado pelo vento tem uma história espiritual que remonta a mais de quatro milênios.
Geograficamente, o Cabo Finisterra não é, evidentemente, o fim do mundo – tampouco o ponto mais ocidental da Europa continental, como muitas vezes se supõe (o Cabo Roca, em Portugal, detém este título).
Mas se trata de um acidente geográfico cuja força mística atrai viajantes desde a antiguidade.
Os peregrinos foram vieram para cá inspirados pela religião, pela aventura ou simplesmente para ficar à “beira do mundo” que conheciam e contemplar para o “Mar Tenebroso”, como era conhecido o Oceano Atlântico na época.
Uma bota de bronze marca o fim da antiga rota de peregrinação
Pixabay
Desde 1500, esse trecho do litoral, conhecido pelos moradores locais como Costa da Morte, testemunhou inúmeros naufrágios importantes. O clima pode ser violentamente imprevisível, com afloramentos rochosos impiedosos para completar.
O pior desastre ambiental da Espanha começou aqui em 13 de novembro de 2002, quando o petroleiro Prestige enfrentou uma tempestade na costa de Finisterra e afundou uma semana depois.
A pequena cidade de Fisterra está situada às margens do Monte Facho, uma colina suave com vistas impressionantes à sua volta.
É como muitas outras cidades neste trecho da costa: construída em volta de um pitoresco porto de pesca com uma extensa praia a leste, afastada do oceano.
Na verdade, está longe de ser a cidade do “fim do mundo” que você poderia imaginar.
Os romanos chamavam as pessoas que viviam aqui de gallaeci – celtas – por causa da pele clara e cabelos louros que se assemelhavam às tribos da Gália (atual França).
Os gallaeci eram animistas – ou seja, acreditavam que tudo no mundo físico – seja o sol, as estrelas, as pedras, as árvores ou a água – possuía uma entidade espiritual.
O Cabo Finisterra é um destino de peregrinação há milhares de anos
Pixabay
“Há uma profunda emoção humana ligada a esses elementos naturais”, diz Colin Jones, presidente da Confraternity of St James, organização especializada em informações sobre o Caminho de Santiago.
Densamente arborizado, o Monte Facho é cortado por pequenas trilhas e tem quase 240 metros de altura. Enquanto sua face oriental desce suavemente até a cidade, seu lado ocidental mergulha dramaticamente no Oceano Atlântico.
Aninhadas em meio à vegetação rasteira na parte oriental, com vista para o porto, encontram-se as ruínas do Eremitério de São Guilherme.
Foi neste mesmo local que os conquistadores romanos avistaram pela primeira vez o simples templo de pedra construído pelos gallaeci para cultuar o sol, o Ara Solis, que consistia de quatro colunas de granito e uma fina cúpula, como descrito pelo historiador galego Benito Vicetto.
Infelizmente, não resta mais nada hoje do Ara Solis, que se supõe ter sido um lugar de adoração pagã ao sol.
Para os romanos, o Ara Solis, erguido no local que eles consideravam ser o fim do mundo, voltado para o por do sol, deve ter sido uma visão fascinante e enigmática.
A notícia sobre a existência desta terra selvagem no fim do mundo começou a se espalhar para além do Império Romano – e viajantes começaram a chegar ao Cabo Finisterra para ver com seus próprios olhos.
O local foi descrito pelo naturalista romano Plínio, o Velho, no livro História Natural, em 77 d.C., e por Ptolomeu na obra Geographia, em 150 d.C. Inicialmente, eles chamavam de Nerium ou Promunturium Celticum, que quer dizer “Promontório Celta”.
A ascensão do cristianismo, especialmente durante os séculos 3 e 4 d.C., entraria em conflito com as crenças animistas. Dizem que o próprio São Tiago teria demolido o Ara Solis. É uma história fantasiosa e, infelizmente, impossível fundamentar.
No século 7 ou 8, o eremitério foi construído por um viajante medieval no mesmo local.
A peregrinação mais antiga a Santiago de Compostela aconteceu no século 9, e começou a aumentar drasticamente durante a Idade Média, quando o cristianismo se espalhou pela Península Ibérica.
Durante este período, regiões de grande significado religioso, como o suposto local de sepultamento de São Tiago, ganharam enorme popularidade, assim como as rotas para chegar até lá.
Há muito debate sobre por quanto tempo os peregrinos continuaram a ver o pôr do sol no “fim da terra” na era medieval. Mas, em meados do século 20, a rota para Finisterra foi praticamente esquecida.
Somente após o aumento da popularidade do Caminho de Santiago ao longo dos anos 1980 e 1990, as pessoas começaram a aparecer em Finisterra novamente, atraídas por sua beleza mítica.
Os últimos quilômetros do trecho da Finisterra do Caminho de Santiago serpenteiam ao longo da costa, terminando no farol que fica no extremo sul do Monte Facho, onde está a bota de bronze.
Para aqueles que andaram de St-Jean-Pied-de-Port, no sudoeste da França – início da tradicional rota francesa, a mais famosa entre os peregrinos – estes são os últimos passos de uma jornada de 870km.
O marco do Km 0 do fica ao norte do farol, atrás do qual se encontra uma vasta área escarpada que desce quase como um anfiteatro natural antes de mergulhar no precipício.
É aqui que os peregrinos queimariam no passado uma peça de roupa como um ato de renascimento. A prática é proibida atualmente, mas os vestígios de rochas queimadas permanecem.
Em vez disso, alguns às vezes amarram pequenas peças de roupa aos arbustos espremidos entre as rochas.
Se os viajantes de antigamente conseguiram testemunhar um pôr do sol no Ara Solis, é provável que no fim do dia tenham continuado a trilha até o topo do Monte Facho. Aqui, três afloramentos rochosos se encontram entre um mar de plantas espessas e espinhosas.
A região mais ao norte é conhecida como Pedras Santas, e é onde, segundo reza a lenda, a Virgem Maria teria descansado depois de viajar para Finisterra para encorajar São Tiago em seus deveres apostólicos.
A vista das Pedras Santas é selvagem e espetacular. As falésias desembocam vertiginosamente no Oceano Atlântico, que se estende até o horizonte.
Os romanos acreditavam que esta área era o portão de entrada para a vida após a morte e para onde o sol se dirigia todas as noites para morrer.
“Não há a mesma quantidade de distrações que você encontra em outros lugares”, diz Carlota Traba, cujo pai nasceu no farol.
“Você simplesmente se senta com as pedras, a água e o pôr do sol – essa é a magia.”
“Você não pode ir mais longe emocionalmente, espiritualmente e fisicamente”, acrescenta Jones. Este é o fim da estrada.
Jorge Luis Ojeda/Unsplash
Uma simples bota de bronze repousa sobre uma rocha com vista para a imensidão do Oceano Atlântico. Não há placa, mas a mensagem é clara. É chegado o fim da linha. E também “o fim do mundo”.
Todas as rotas de peregrinação do Caminho de Santiago se encontram na catedral de Santiago de Compostela, capital da Galícia, no noroeste da Espanha, onde estaria localizada a suposta sepultura de São Tiago.
Por mais de mil anos, as pessoas percorreram esses caminhos para homenagear o apóstolo, mas para um pequeno número de viajantes que chegam à cidade sagrada, a jornada ainda não está completa.
A partir da praça principal, outro percurso menos conhecido surge a oeste. As torres da catedral desaparecem à medida que a trilha deixa a cidade e segue por 90 km até o indomável Oceano Atlântico – e o Cabo Finisterra.
Com nome que vem do latim, traduzido literalmente como “fim da terra”, este recanto da Espanha cortado pelo vento tem uma história espiritual que remonta a mais de quatro milênios.
Geograficamente, o Cabo Finisterra não é, evidentemente, o fim do mundo – tampouco o ponto mais ocidental da Europa continental, como muitas vezes se supõe (o Cabo Roca, em Portugal, detém este título).
Mas se trata de um acidente geográfico cuja força mística atrai viajantes desde a antiguidade.
Os peregrinos foram vieram para cá inspirados pela religião, pela aventura ou simplesmente para ficar à “beira do mundo” que conheciam e contemplar para o “Mar Tenebroso”, como era conhecido o Oceano Atlântico na época.
Uma bota de bronze marca o fim da antiga rota de peregrinação
Pixabay
Desde 1500, esse trecho do litoral, conhecido pelos moradores locais como Costa da Morte, testemunhou inúmeros naufrágios importantes. O clima pode ser violentamente imprevisível, com afloramentos rochosos impiedosos para completar.
O pior desastre ambiental da Espanha começou aqui em 13 de novembro de 2002, quando o petroleiro Prestige enfrentou uma tempestade na costa de Finisterra e afundou uma semana depois.
A pequena cidade de Fisterra está situada às margens do Monte Facho, uma colina suave com vistas impressionantes à sua volta.
É como muitas outras cidades neste trecho da costa: construída em volta de um pitoresco porto de pesca com uma extensa praia a leste, afastada do oceano.
Na verdade, está longe de ser a cidade do “fim do mundo” que você poderia imaginar.
Os romanos chamavam as pessoas que viviam aqui de gallaeci – celtas – por causa da pele clara e cabelos louros que se assemelhavam às tribos da Gália (atual França).
Os gallaeci eram animistas – ou seja, acreditavam que tudo no mundo físico – seja o sol, as estrelas, as pedras, as árvores ou a água – possuía uma entidade espiritual.
O Cabo Finisterra é um destino de peregrinação há milhares de anos
Pixabay
“Há uma profunda emoção humana ligada a esses elementos naturais”, diz Colin Jones, presidente da Confraternity of St James, organização especializada em informações sobre o Caminho de Santiago.
Densamente arborizado, o Monte Facho é cortado por pequenas trilhas e tem quase 240 metros de altura. Enquanto sua face oriental desce suavemente até a cidade, seu lado ocidental mergulha dramaticamente no Oceano Atlântico.
Aninhadas em meio à vegetação rasteira na parte oriental, com vista para o porto, encontram-se as ruínas do Eremitério de São Guilherme.
Foi neste mesmo local que os conquistadores romanos avistaram pela primeira vez o simples templo de pedra construído pelos gallaeci para cultuar o sol, o Ara Solis, que consistia de quatro colunas de granito e uma fina cúpula, como descrito pelo historiador galego Benito Vicetto.
Infelizmente, não resta mais nada hoje do Ara Solis, que se supõe ter sido um lugar de adoração pagã ao sol.
Para os romanos, o Ara Solis, erguido no local que eles consideravam ser o fim do mundo, voltado para o por do sol, deve ter sido uma visão fascinante e enigmática.
A notícia sobre a existência desta terra selvagem no fim do mundo começou a se espalhar para além do Império Romano – e viajantes começaram a chegar ao Cabo Finisterra para ver com seus próprios olhos.
O local foi descrito pelo naturalista romano Plínio, o Velho, no livro História Natural, em 77 d.C., e por Ptolomeu na obra Geographia, em 150 d.C. Inicialmente, eles chamavam de Nerium ou Promunturium Celticum, que quer dizer “Promontório Celta”.
A ascensão do cristianismo, especialmente durante os séculos 3 e 4 d.C., entraria em conflito com as crenças animistas. Dizem que o próprio São Tiago teria demolido o Ara Solis. É uma história fantasiosa e, infelizmente, impossível fundamentar.
No século 7 ou 8, o eremitério foi construído por um viajante medieval no mesmo local.
A peregrinação mais antiga a Santiago de Compostela aconteceu no século 9, e começou a aumentar drasticamente durante a Idade Média, quando o cristianismo se espalhou pela Península Ibérica.
Durante este período, regiões de grande significado religioso, como o suposto local de sepultamento de São Tiago, ganharam enorme popularidade, assim como as rotas para chegar até lá.
Há muito debate sobre por quanto tempo os peregrinos continuaram a ver o pôr do sol no “fim da terra” na era medieval. Mas, em meados do século 20, a rota para Finisterra foi praticamente esquecida.
Somente após o aumento da popularidade do Caminho de Santiago ao longo dos anos 1980 e 1990, as pessoas começaram a aparecer em Finisterra novamente, atraídas por sua beleza mítica.
Os últimos quilômetros do trecho da Finisterra do Caminho de Santiago serpenteiam ao longo da costa, terminando no farol que fica no extremo sul do Monte Facho, onde está a bota de bronze.
Para aqueles que andaram de St-Jean-Pied-de-Port, no sudoeste da França – início da tradicional rota francesa, a mais famosa entre os peregrinos – estes são os últimos passos de uma jornada de 870km.
O marco do Km 0 do fica ao norte do farol, atrás do qual se encontra uma vasta área escarpada que desce quase como um anfiteatro natural antes de mergulhar no precipício.
É aqui que os peregrinos queimariam no passado uma peça de roupa como um ato de renascimento. A prática é proibida atualmente, mas os vestígios de rochas queimadas permanecem.
Em vez disso, alguns às vezes amarram pequenas peças de roupa aos arbustos espremidos entre as rochas.
Se os viajantes de antigamente conseguiram testemunhar um pôr do sol no Ara Solis, é provável que no fim do dia tenham continuado a trilha até o topo do Monte Facho. Aqui, três afloramentos rochosos se encontram entre um mar de plantas espessas e espinhosas.
A região mais ao norte é conhecida como Pedras Santas, e é onde, segundo reza a lenda, a Virgem Maria teria descansado depois de viajar para Finisterra para encorajar São Tiago em seus deveres apostólicos.
A vista das Pedras Santas é selvagem e espetacular. As falésias desembocam vertiginosamente no Oceano Atlântico, que se estende até o horizonte.
Os romanos acreditavam que esta área era o portão de entrada para a vida após a morte e para onde o sol se dirigia todas as noites para morrer.
“Não há a mesma quantidade de distrações que você encontra em outros lugares”, diz Carlota Traba, cujo pai nasceu no farol.
“Você simplesmente se senta com as pedras, a água e o pôr do sol – essa é a magia.”
“Você não pode ir mais longe emocionalmente, espiritualmente e fisicamente”, acrescenta Jones. Este é o fim da estrada.