Cotidiano
Em Veneza, o debate sobre turismo que põe em risco o meio ambiente
Cartaz em Veneza
Arquivo Pessoal
Enquanto as estrelas do cinema desfilavam pelos tapetes vermelhos em Veneza, no festival do dia 7 de setembro, grandes celebridades, como Mick Jagger, davam apoio a ativistas ambientais que protestavam contra as mudanças climáticas. Até o presidente Bolsonaro foi lembrado como algoz do clima, ao lado de nomes de líderes que não têm respeitado as evidências científicas sobre o aquecimento global.
Não muito longe dali, porém, outro grupo trazia um cartaz onde se lia “Não a grandes navios”, chamando a atenção de amigos meus que estavam por ali, turistando e tietando. Mandaram-me a foto e pesquisei para trazer a informação até vocês.
Para contextualizar o movimento, e não transformá-lo somente num protesto de moradores contra grandes navios nos canais de Veneza, vale conhecer um pouco mais da história local. No século XVI, explica o historiador Franco Corè, expert em Veneza, os donos do poder decidiram dar uma travada nos abusos de consumo das famílias venezianas.
“Os dispositivos legislativos limitavam o luxo da moda masculina e feminina e obrigavam certos grupos sociais a usarem sinais distintos. As mulheres não precisavam usar roupas de seda, tranças e vestidos com ouro, prata ou pérolas na cabeça; as mangas não deveriam ser muito longas e tinham pérolas. O uso de joias no pescoço também foi proibido. Aos fiscais cabia identificar encargos desnecessários, despesas injustificadas, assentos e salários que não faziam sentido , para eliminá-los. O objetivo era ganhar economia e eficiência”, escreve Corè.
Essa época, quando Veneza era chamada de “Sereníssima”, foi lembrada pelos ativistas ambientais do movimento “No Grand Navi”. Até com uma certa inveja, se assim podemos definir o sentimento. Séculos e séculos depois, aquela eficiência em cortar custos excessivos, em parar de cometer abusos, foi lembrada. É uma boa referência para os políticos atuais, que desprezam até mesmo os estudos mais rígidos que mostram os impactos das atividades humanas sobre o meio ambiente. Mesmo que, naquela época, o meio ambiente ainda não dava sinais de exaustão como vem dando.
Voltamos para a atualidade e para os protestos. O “No Grand Navi” foi criado exatamente com o objetivo de conter os excessos. No caso específico, os excessos de grandes navios de Cruzeiro que entram na Baía de São Marco, elevando não só a poluição como o risco de se chocarem com outras embarcações menores. Isto aconteceu recentemente.
No dia 2 de junho, um grande navio de cruzeiro colidiu com um bote que transportava turistas na lagoa, ferindo quatro pessoas e jogando outras nas águas.
Cruzeiro colide com barco de turistas em Veneza, na Itália
Andrea Merola/ANSA via AP
O perigo é constante, e cada vez maior, porque os cruzeiros também são cada vez maiores, mais cheios de pessoas ávidas por conhecer a bela cidade. O trânsito dos cruzeiros, tão perto do continente, permite que os turistas vejam a icônica Piazza San Marco mas isto tem um custo alto não só para o meio ambiente como para o tráfego naval e a qualidade de vida dos venezianos.
No dia do acidente, alguns moradores gritaram a frase: “Isto aqui não é Disneylândia”, lembrando o movimento “Não em meu quintal” (Nimby na sigla em inglês), nascido nos anos 80, nos Estados Unidos, que significa uma resistência de moradores locais contra usos indesejados de terrenos perto de si. Tal movimento é criticado por alguns estudiosos, como Edward Glaeser, que em “Os Centros Urbanos” (Ed. Campus) o define como “uma maldição” que precisa ser controlada.
“Em cidades mais velhas, como Nova York, o movimento Nimby se esconde sob uma capa de movimento pela preservação, pervertendo a causa justa de preservar as lembranças mais bonitas em uma tentativa de congelar amplos bairros repletos de arquitetura medíocre”, escreve Glaeser.
Mas o movimento “No Grand Navy”, apesar de ser, sim, a favor da preservação e contra a exploração ávida dos turistas, está longe de ser egoísta, embora possa querer privar algumas pessoas de conhecerem aquela belíssima região a bordo de um navio, com todo o conforto do mundo. É preciso mudar paradigmas para deixar que outros tenham qualidade de vida. Este será, cada vez mais, o modus vivendi adequado da sociedade.
O que vem acontecendo, sobretudo no setor de turismo, no entanto, é que a ganância de se conseguir mais pessoas e mais capital vem prejudicando muito alguns pontos e, sim, trazendo riscos.
A imagem de um navio imenso entrando pelo mar em Veneza, que já é considerada a cidade portuária mais poluída da Europa, dá bem a dimensão do excesso. E vale a pena lembrar, de novo, que excessos podem ser cometidos pela população, mas podem também ser limitados por quem recebe o bastião e ganha, assim, possibilidade de ter uma visão macro de qualquer situação. Como fizeram os donos do poder no século XVI na Sereníssima Veneza.
Mas apesar do grave acidente acontecido em 2 de junho com o cruzeiro, dizem os ativistas do “No Grande Navy”, o governo italiano não tomou, até agora, nenhuma medida para conter os excessos e para aumentar a segurança na lagoa. Por isto, no dia 7 de setembro, lá estavam os cartazes, conclamando o mundo da cultura, artes e show business, a se juntarem à causa, exigindo “justiça climática real”.
“Que o próximo governo italiano possa finalmente declarar uma emergência climática, interromper a produção que está provocando a quebra do clima e buscar uma transição justa para uma economia ecologicamente regenerativa. Ou seja, abandonar as atividades de construção prejudiciais para realmente nos comprometermos com a salvaguarda de nosso território, que já está profundamente sujeito às mudanças climáticas”, escrevem os ativistas.
Este giro pelo mundo, conhecendo a história e os reveses de quem se preocupa e faz contato com o que acontece ao redor, com o meio ambiente, é necessário. Nós, brasileiros, hoje em dia tão temerosos de que a desgovernança que permitiu, entre outras coisas, o fogo que ainda se espalha pela Amazônia, nos jogue para um lugar de desprezo na história de quem luta pela preservação do meio ambiente, podemos, ao menos, perceber que não estamos sozinhos nisto. Permitir exploração turística tão agressiva num local como Veneza, cidade tão antiga e mundialmente conhecida, é também um descalabro. Para a sorte dos italianos, não há mortes e destruição como vem acontecendo na maior floresta tropical do mundo.
Arquivo Pessoal
Enquanto as estrelas do cinema desfilavam pelos tapetes vermelhos em Veneza, no festival do dia 7 de setembro, grandes celebridades, como Mick Jagger, davam apoio a ativistas ambientais que protestavam contra as mudanças climáticas. Até o presidente Bolsonaro foi lembrado como algoz do clima, ao lado de nomes de líderes que não têm respeitado as evidências científicas sobre o aquecimento global.
Não muito longe dali, porém, outro grupo trazia um cartaz onde se lia “Não a grandes navios”, chamando a atenção de amigos meus que estavam por ali, turistando e tietando. Mandaram-me a foto e pesquisei para trazer a informação até vocês.
Para contextualizar o movimento, e não transformá-lo somente num protesto de moradores contra grandes navios nos canais de Veneza, vale conhecer um pouco mais da história local. No século XVI, explica o historiador Franco Corè, expert em Veneza, os donos do poder decidiram dar uma travada nos abusos de consumo das famílias venezianas.
“Os dispositivos legislativos limitavam o luxo da moda masculina e feminina e obrigavam certos grupos sociais a usarem sinais distintos. As mulheres não precisavam usar roupas de seda, tranças e vestidos com ouro, prata ou pérolas na cabeça; as mangas não deveriam ser muito longas e tinham pérolas. O uso de joias no pescoço também foi proibido. Aos fiscais cabia identificar encargos desnecessários, despesas injustificadas, assentos e salários que não faziam sentido , para eliminá-los. O objetivo era ganhar economia e eficiência”, escreve Corè.
Essa época, quando Veneza era chamada de “Sereníssima”, foi lembrada pelos ativistas ambientais do movimento “No Grand Navi”. Até com uma certa inveja, se assim podemos definir o sentimento. Séculos e séculos depois, aquela eficiência em cortar custos excessivos, em parar de cometer abusos, foi lembrada. É uma boa referência para os políticos atuais, que desprezam até mesmo os estudos mais rígidos que mostram os impactos das atividades humanas sobre o meio ambiente. Mesmo que, naquela época, o meio ambiente ainda não dava sinais de exaustão como vem dando.
Voltamos para a atualidade e para os protestos. O “No Grand Navi” foi criado exatamente com o objetivo de conter os excessos. No caso específico, os excessos de grandes navios de Cruzeiro que entram na Baía de São Marco, elevando não só a poluição como o risco de se chocarem com outras embarcações menores. Isto aconteceu recentemente.
No dia 2 de junho, um grande navio de cruzeiro colidiu com um bote que transportava turistas na lagoa, ferindo quatro pessoas e jogando outras nas águas.
Cruzeiro colide com barco de turistas em Veneza, na Itália
Andrea Merola/ANSA via AP
O perigo é constante, e cada vez maior, porque os cruzeiros também são cada vez maiores, mais cheios de pessoas ávidas por conhecer a bela cidade. O trânsito dos cruzeiros, tão perto do continente, permite que os turistas vejam a icônica Piazza San Marco mas isto tem um custo alto não só para o meio ambiente como para o tráfego naval e a qualidade de vida dos venezianos.
No dia do acidente, alguns moradores gritaram a frase: “Isto aqui não é Disneylândia”, lembrando o movimento “Não em meu quintal” (Nimby na sigla em inglês), nascido nos anos 80, nos Estados Unidos, que significa uma resistência de moradores locais contra usos indesejados de terrenos perto de si. Tal movimento é criticado por alguns estudiosos, como Edward Glaeser, que em “Os Centros Urbanos” (Ed. Campus) o define como “uma maldição” que precisa ser controlada.
“Em cidades mais velhas, como Nova York, o movimento Nimby se esconde sob uma capa de movimento pela preservação, pervertendo a causa justa de preservar as lembranças mais bonitas em uma tentativa de congelar amplos bairros repletos de arquitetura medíocre”, escreve Glaeser.
Mas o movimento “No Grand Navy”, apesar de ser, sim, a favor da preservação e contra a exploração ávida dos turistas, está longe de ser egoísta, embora possa querer privar algumas pessoas de conhecerem aquela belíssima região a bordo de um navio, com todo o conforto do mundo. É preciso mudar paradigmas para deixar que outros tenham qualidade de vida. Este será, cada vez mais, o modus vivendi adequado da sociedade.
O que vem acontecendo, sobretudo no setor de turismo, no entanto, é que a ganância de se conseguir mais pessoas e mais capital vem prejudicando muito alguns pontos e, sim, trazendo riscos.
A imagem de um navio imenso entrando pelo mar em Veneza, que já é considerada a cidade portuária mais poluída da Europa, dá bem a dimensão do excesso. E vale a pena lembrar, de novo, que excessos podem ser cometidos pela população, mas podem também ser limitados por quem recebe o bastião e ganha, assim, possibilidade de ter uma visão macro de qualquer situação. Como fizeram os donos do poder no século XVI na Sereníssima Veneza.
Mas apesar do grave acidente acontecido em 2 de junho com o cruzeiro, dizem os ativistas do “No Grande Navy”, o governo italiano não tomou, até agora, nenhuma medida para conter os excessos e para aumentar a segurança na lagoa. Por isto, no dia 7 de setembro, lá estavam os cartazes, conclamando o mundo da cultura, artes e show business, a se juntarem à causa, exigindo “justiça climática real”.
“Que o próximo governo italiano possa finalmente declarar uma emergência climática, interromper a produção que está provocando a quebra do clima e buscar uma transição justa para uma economia ecologicamente regenerativa. Ou seja, abandonar as atividades de construção prejudiciais para realmente nos comprometermos com a salvaguarda de nosso território, que já está profundamente sujeito às mudanças climáticas”, escrevem os ativistas.
Este giro pelo mundo, conhecendo a história e os reveses de quem se preocupa e faz contato com o que acontece ao redor, com o meio ambiente, é necessário. Nós, brasileiros, hoje em dia tão temerosos de que a desgovernança que permitiu, entre outras coisas, o fogo que ainda se espalha pela Amazônia, nos jogue para um lugar de desprezo na história de quem luta pela preservação do meio ambiente, podemos, ao menos, perceber que não estamos sozinhos nisto. Permitir exploração turística tão agressiva num local como Veneza, cidade tão antiga e mundialmente conhecida, é também um descalabro. Para a sorte dos italianos, não há mortes e destruição como vem acontecendo na maior floresta tropical do mundo.